A chuva caia pesadamente no final da tarde. A frota de caminhões do Grupo Castro ficava a céu aberto e era difícil até mesmo de enxergar os veículos em meio à torrente de água que desabava. Mesmo assim, a logo da principal marca do grupo saltava aos olhos do Detetive Felipe: “Reino Encantado”.
– Parece que estamos vivendo o conto de fadas de um maníaco – rosnou Felipe da janela do saguão, encarando os caminhões na chuva – minha vontade é de mandar prender tudo nesta cidade que tiver nome relacionado à livros infantis. A senhora tem certeza de que estão todos aí?
– Tenho sim, querido – atravessando o salão, em sua direção, vinham a Madame Laila, segurando uma pasta de capa dura, com Rúbia a seu lado, grudada em um enorme copo de Milk-shake. Laila entregou a pasta para Felipe.
– Aí está o inventário, pode conferir, mandei reunir toda a frota assim que vimos aquelas fotos revoltantes.
– Ótimo – disse Felipe folheando desanimadoramente as páginas na pasta – o problema é que estou sozinho para conferir todos os caminhões… vou passar a semana inteira aqui desse jeito.
Então olhou para a filha e o enorme copo.
– Está se divertindo?
– Madame Laila é muito legal. Você sabia que tem todo tipo de máquina de doces de graça por aqui? Ela disse que é para clientes e funcionários, mas que eu podia pegar tudo que quisesse.
– Adolescentes se acham maduros até verem um doce pela frente – Felipe revirou os olhos – isso é uma empresa de moda, todo mundo aqui faz dieta. Você deve ser a primeira pessoa a comer algum desses doces.
– Você vive no passado, investigador – Madame Laila interrompeu – a moda não é só para magrelos, nós fazemos questão de atender a todos os tamanhos e gostos e é isso que faz de nossa empresa…
O celular do detetive começou a tocar.
– Finalmente, salvo dessa conversa – resmungou antes de atender – alô – Sua expressão mudou imediatamente, como se tivesse visto um fantasma, quando uma voz do outro lado, modulada eletronicamente, respondeu:
– Olá Felipe, como vai?
– Quem é você? Como você conseguiu esse número?
– Sou a Fada Madrinha e estou desapontada com você.
– Não preciso de nenhuma fada madrinha, preciso de respostas. Vamos nos encontrar e…
– Eu não disse que era a sua fada madrinha. Você entregou uma de minhas protegidas nas mãos dos assassinos. Bianca morrerá nos próximos minutos, a vida dela está em suas mãos.
A resposta ondulou entre expressões de surpresa e interjeições, mas acabou depressa. O detetive desligou e correu para a filha.
– Precisamos ir, agora mesmo.
– O que aconteceu? – Perguntou Rúbia.
– Uma emergência no hospital.
– Mas você nem analisou os caminhões ainda! – Madame Laila tentou segurar o detetive pelo braço – escute, a cada minuto que meus caminhões ficam parados eu levo um prejuízo enorme.
– Vai ter que segura-los mais um pouco, dona – Felipe não gostou de como o tom da mulher havia mudado de repente – lembre-se também de que eu posso interditar toda a sua empresa, já que tem pessoal seu envolvido no crime. Imagine o prejuízo que isso daria. Agora me solte, tem uma vida em jogo.
– Eu posso ficar por aqui trabalhando no inventário se quiser – disse Rúbia prontamente.
Felipe assentiu. Sabia que a filha só queria comer mais doces, afinal, nem deveria saber pra que serve um inventário, mas achou a oportunidade interessante. Antes de sair disse a ela baixinho.
– Fique de olho na velha pavoa. Se ela começar a agir estranho, me avise.
***
O transito estava caótico por causa da chuva, o carro mal conseguia passar dos 20 km por hora em um anda e para contínuo. Felipe começou a ficar preocupado e resolveu avisar ao delegado. Mal deixou ele atender e já começou a falar:
– Ei, patrão! Acabei de receber uma ligação anônima. Nossa bela adormecida está em perigo…
– Quem?
– Como quem? Bianca Vieira, a moça do transplante raro que está no hospital.
– Achei que ela fosse a Branca de Neve.
– Bem, é que agora que ela está em coma… ah isso não importa… preciso que reforce a escolta dela, vão tentar matá-la hoje à noite!
– Olha, Felipe, eu já mandei o Giovani pra ficar de vigia, ninguém vai tentar nada com um policial na porta do…
– Giovani? Aquela rolha de poço? Podia ter pendurado a foto de um cachorrinho na porta do quarto que imporia mais respeito. Ela é nossa principal testemunha nesse caso bizarro, o depoimento dela vai fazer um estrago nessa cidade, com certeza…
– Eu sei que precisamos do depoimento da moça, mas tenho que usar o pessoal disponível. Não temos recursos para brincar de teoria da conspiração. Se está tão preocupado, vá você mesmo montar guarda na porta da sua princesa. Mas não vai receber hora extra por isso. – O delegado desligou.
O desespero aumentou. Não seria tão difícil assim para o delegado indicar alguém para vigiar uma testemunha de um caso tão importante, essa má vontade pareceu suspeita, mas também não havia tempo para pensar nisso. Felipe abriu a agenda do telefone novamente, deslizou até a letra C e clicou no contato “Conversinha”. Tocou uma vez e Adriana atendeu.
– Onde você está? – Ela disse afobada – estou tentando te ligar faz um tempão e só dá ocupado! Recebi uma mensagem da fada madrinha, alguém vai tentar matar Bianca hoje.
– Bom – respondeu Felipe surpreso – isso resume o motivo de eu ter te ligado. Estou indo para o hospital, mas o trânsito está péssimo. Me encontre por lá o mais rápido possível, o chefe não vai mandar mais ninguém.
***
Os dois policiais chegaram quase ao mesmo tempo no hospital, se encontraram no estacionamento e seguiram juntos até a recepção. Lá encontraram o lugar quase vazio, não fosse pela recepcionista que conversava com uma enfermeira debruçada preguiçosamente no balcão.
– Estamos procurando Bianca Vieira – se adiantou Felipe enquanto mostrava o distintivo.
A enfermeira se endireitou na cadeira e as duas se entreolharam, suas expressões mostravam um grande desconforto com a presença dos policiais ali.
– Escuta, policial – disse a recepcionista – os médicos disseram que vão avisar quando ela sair do coma e que, depois dos seus amigos policiais, não era pra deixar subir mais ninguém.
Felipe bateu a mão no balcão e aproximou seu rosto ao da moça, que encolheu assustada.
– Que amigos policiais? – Ele disse pausadamente.
– Os… dois policiais que acabaram de subir… pelo menos eles disseram que eram…
Adriana sacou sua arma e a destravou.
– Qual é o quarto?
– Eu levo vocês lá – a enfermeira se prontificou, mas não sem dar um suspiro profundo, seus olhos estavam marejados.
A enfermeira liderou os dois policiais pelos corredores do hospital. De vez em quando um médico ou outros enfermeiros saíam de uma porta e entravam rapidamente por outra, tão ocupados que nem notavam os visitantes armados. Chegaram, enfim, a uma ala restrita e encontraram logo outro policial, que vinha assobiando tranquilamente da direção oposta a eles.
– Giovani? – Berrou Felipe – por que não está vigiando o quarto da moça?
– Estou na minha pausa de 10 minutos – ele respondeu indignado.
– Então você deve ter visto algum policial passar por aqui, não?
– Ninguém.
– Mas, a que horas você saiu pra sua pausa?
Giovani olhou para o relógio de pulso, arregalou os olhos e respondeu, corado de vergonha:
– Faz uns 45 minutos.
Os dois nem se dignaram a responder e correram para a ala onde se encontrava Bianca. A enfermeira os perseguiu e apontou uma porta à direita.
– O quarto dela é aquele ali!
Ouviram vozes vindos de dentro do quarto. Adriana afastou a enfermeira, indicando que havia perigo. Em silêncio, tentaram ouvir o que se passava por lá.
– O respirador está desligado, mas não aconteceu nada – disse alguém lá dentro. Haviam dois homens em pé, trajando ternos escuros, ao lado da cama de Bianca. A moça parecia dormir tranquilamente, alheia ao mundo à sua volta.
O segundo homem, com cabelos grisalhos, apanhou um travesseiro no armário e se dirigiu à cabeceira da cama.
– Vamos fazer isso do jeito tradicional – e posicionou o travesseiro sobre o rosto de Bianca. Os detetives pularam para dentro do quarto apontando suas armas para os dois.
– Parados aí, é a polícia!
Os homens rapidamente sacaram pistolas e dispararam contra os policiais. Felipe se abaixou e Adriana correu de volta para fora do quarto, evitando os disparos e se ocultando ao lado da porta. Os estranhos deram a volta na cama para pegar Felipe, quando Adriana surgiu novamente na porta atirando. O tiro acertou o homem de cabelos grisalhos na cabeça, ele caiu de uma vez sem se mexer e a pistola escorregou de suas mãos para debaixo da cama. O segundo homem atirou para frente, assustado, e Adriana saltou de volta para seu abrigo.
A segunda investida dos policiais acabou falhando por falta de sincronia. Felipe se levantou para atirar e, ao mesmo tempo, Adriana entrou novamente no quarto. O homem de terno aproveitou o breve momento em que os policiais se atrapalharam e pulou em Felipe, empurrando-o para cima de Adriana porta à fora e abrindo caminho para sua fuga.
– Entre no quarto e cuide de Bianca – disse Felipe para a enfermeira enquanto se levantava – ela me pareceu estar bem, mas talvez precise de cuidados. – A mulher tremia, encolhida no corredor, mas obedeceu logo e entrou no quarto, arregalando os olhos para o corpo estendido ao pé da cama.
Os policiais correram atrás do último bandido, mas não precisaram ir muito longe. O homem virou no primeiro corredor que encontrou e deu de cara com Giovani, que colocou seu corpanzil no caminho de supetão acertando-o como uma parede. Ele rodou no ar e caiu de costas com tudo no chão.
– Você está preso…
Mas o bandido ainda estava com a arma nas mãos e apontou para Giovani. Ouviu-se o estrondo de um tiro. O braço do homem de terno caiu ao lado de seu corpo sem vida, Felipe havia sido mais rápido e salvou a vida do companheiro.
– Avise a central e peça pra mandarem uma equipe – disse o detetive ofegante, entregando o rádio para o policial.
– Vou ter que pedir pra me mandarem uma cueca nova também – respondeu Giovani suando frio.
***
Adriana e Felipe voltaram para o quarto de Bianca e a encontraram na mesma posição, com semblante de quem dormia serenamente, mas agora seu belo rosto estava pálido e seus lábios arroxeados. O travesseiro pendia na lateral da cama, próximo à cabeceira e a enfermeira chorava copiosamente, sentada numa cadeira ao lado.
– O que… o que você fez? – Felipe mal conseguiu falar com a surpresa – você a matou?
– Eu… vocês não sabem… com quem estão lidando… – as palavras da enfermeira saiam misturadas aos soluços – eles iam matar… minha…
A enfermeira segurava algo tremulamente com as duas mãos. Adriana reconheceu a pistola do bandido, que havia escorregado para debaixo da cama de Bianca.
– Está tudo bem, me entregue isso – ela usou a voz mais calma possível – nós vamos proteger você e a sua família.
A mulher ficou por um segundo como paralisada, então disse com um sorriso doloroso.
– Vocês vão estar mortos antes do final de semana.
Ela encostou o cano da arma no próprio queixo e disparou.